Por Veridiana Ribeiro*
Apesar
da derrota eleitoral em 2002, o PSDB acabou sendo vitorioso no que diz respeito
à implementação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE),
elaborado por Bresser Pereira, na lógica do Estado Mínimo. O Banco Mundial
indicava ao governo investir apenas na atenção básica à saúde, por ter custo
relativamente baixo e alcançar grande parte da população.
Nesse ínterim surgiram as Organizações Sociais (as OSs) para
administrar as Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs), as Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público (OSCIPs) e as Fundações Estatais de Direito Privado
(FEDP). Todas exemplos claros do PDRAE. Logo em seguida veio o REHUF, o
Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais, que
propõe “novos” mecanismos de financiamento e a melhoria no processo de gestão.
E, por último, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Em comum, as três formas de organização apresentam a
flexibilização dos direitos dos trabalhadores no serviço público, a transferência
da execução de políticas sociais para instituições de direito privado, os
contratos de gestão e a ausência do controle social.
Durante muitos anos, a falta de pessoal, o desmantelamento e o
sucateamento da estrutura dos HUs (Hospitais Universitários) foram ignorados
até que, em 2006, um estudo do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que a
situação de mais de 26 mil funcionários dos HUs contratados via fundações era
ilegal.
Sabendo da necessidade dos HUs de continuarem a funcionar, o TCU
deu um prazo longo (de 2006 a 2010) para que o Governo Federal se adequasse a
lei. Era necessário que a situação fosse resolvida através da substituição do
quadro de terceirizados por concursados.
No último dia de mandato do presidente Lula e também último dia
do prazo dado pelo TCU para a adequação à lei, em 31 de dezembro de 2010, foi
lançada a MP 520, que criava a EBSERH e trazia a “solução” para a
“regularização” desses funcionários.
Em junho de 2011, a MP acabou expirando no Senado Federal, sendo
prontamente reeditada em regime de urgência pelo Governo Dilma com uma nova
face: o PL 1749, com algumas mudanças em relação a MP, mas com a mesma essência
privatista. A Lei foi aprovada na Câmara Federal e no Senado, e sancionada pela
presidenta (lei nº12550 de 15 de dezembro de 2011).
Apesar dos defensores da EBSERH - governo, Banco Mundial, muitos
dirigentes de OSs e OSCIPs - , alegarem que ela é uma empresa pública, os
termos de seu estatuto deixam claro que a empresa terceiriza a administração,
desvincula os HUs das universidades, enfraquecendo o caráter público dos
mesmos, o que representa uma afronta à autonomia universitária e aos pilares da
universidade pública: ensino, pesquisa, e extensão.
E como fica o controle social que vem, ano a ano, sendo construído
no setor da saúde? O controle social é um direito assegurado pela Constituição
Federal para que os cidadãos não somente participem da formulação de políticas
públicas, mas, sobretudo, fiscalizem a aplicação dos recursos públicos para que
eles possam ser direcionados para medidas que realmente atendam ao interesse
público. É o controle social que permite a interação do cidadão com as
políticas públicas e com a ação do Estado, podendo exigir a prestação de contas
do gestor público sobre sua atuação.
Trata-se de um assunto de extrema importância e que precisa ser
encarado de frente, principalmente, nos conselhos de saúde. Frisemos, ainda,
que foi a partir dos processos de controle social, vinculados ao sistema
público de saúde, e das possibilidades originadas de contribuição dos
trabalhadores, em especial os farmacêuticos, que surgiram propostas como o
programa Qualifar SUS (de qualificação do farmacêutico no SUS).
E mais, a empresa criada para “cuidar” dos serviços hospitalares
sendo guiada por interesses privados, longe do controle social e pouco (melhor
dizendo nada) transparente, torna-se mais permissiva à corrupção.
O professor Nelson Souza e Silva, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), avalia que a consequência de entregar nas mãos de empresas a
administração dos hospitais públicos é o desmantelamento do Sistema Único de
Saúde (SUS): “Eu passo a ter o setor público cuidando da atenção básica e as
empresas administrando os recursos da alta complexidade. Se eu faço isso, eu
quebro o SUS e seus princípios de integralidade e universalidade”. Segundo o
mesmo, o sistema deixa de existir.
Com a EBSERH, a característica de hospital voltado para a
formação de profissionais da saúde é prejudicada. A pesquisa e a extensão
estarão sob a lógica de funcionamento da empresa, considerando seus princípios
fundamentais do cumprimento de metas, da gestão e da assistência na perspectiva
mercadológica.
Um estudo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo demonstra
que a taxa de mortalidade nos hospitais administrados por Organizações Sociais
é 70,1%, maior do que nos de administração direta público-estatal. As OSs
empregam a mesma lógica da EBSERH nos hospitais públicos.
Ressalto que o único local dentro do Sistema Único de Saúde onde
é possível ao usuário ter acesso aos serviços de alta complexidade e alto custo
é exatamente nos HUs, visto que os demais hospitais públicos ou conveniados, em
sua grande maioria, não dispõem de profissionais qualificados e nem de
instalações adequadas para tal atividade. Essa foi uma das justificativas usada
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) para rejeitar a EBSERH, e continuar
administrando o seu HU.
Além de tudo que já foi dito, a EBSERH desrespeita as duas
maiores instâncias de controle social no SUS: a Conferência Nacional de Saúde e
o Conselho Nacional de Saúde. Ambas, inclusive, se posicionaram contra a sua
criação.
Como se não bastasse todos os argumentos contrários para entregar
os HUs a essa empresa, o PCCS (Plano de Carreira, Cargos e Salários) da EBSERH,
acaba com a isonomia salarial, privilegiando algumas categorias profissionais
em detrimento de outras. Criam classes especificas com cargas horárias e faixas
salariais diferenciadas. Por tudo isso, a nossa luta é por uma Carreira Única
no Sistema Único de Saúde.
A luta nos estados
Até agora, duas instituições disseram não a adesão à EBSERH: a
Universidade Federal do Paraná (UFPR), que foi a primeira a rejeitar, e, depois,
a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). No entanto, de acordo com as
informações contidas no site da empresa (www.ebserh.mec.gov.br),
19 universidades federais, em 19 estados brasileiros, aderiram. Mesmo contra a
vontade da comunidade acadêmica. Em muitos casos, a adesão foi feita sem debate
e sem a apreciação dos dois colegiados superiores das instituições, o Conselho
de Administração (Consad) e o Conselho Universitário (Consun), como na Universidade
do Maranhão (UFMA), onde a Justiça suspendeu o convênio entre a UFMA e a
EBSERH, em 13 de setembro de 2013. A reitoria recorreu.
Já na Federal da Paraíba (UFPB), a reitoria encerrou a votação
que foi bastante conturbada, no Conselho Universitário, e, depois, a portas
fechadas, aprovou a adesão. As entidades de trabalhadores entraram com
representação, pedindo a anulação do processo. No Piauí, a aprovação gerou
demissão coletiva da diretoria e da equipe médica do HU. Na Universidade de
Brasília (UnB), o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma Ação Civil de
Nulidade de Atos Administrativos, na qual classifica a forma de contratação de
serviços das atividades de saúde pela EBSERH como “precária, ilegal e imoral”.
O MPF na Bahia, acionado pelos sindicatos do estado, decidiu
instaurar inquérito civil público para acompanhar a vinculação da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) à Empresa.
O Sindicato Estadual dos Trabalhadores em Educação do Ensino
Superior do Rio Grande do Norte (SINTEST/RN) protocolou uma representação
contra a EBSERH, em 11 de setembro de 2013, na Procuradoria da República do Rio
Grande do Norte para reverter o processo na federal potiguar. Já os sindicatos
do Ceará, atuam para reverter o processo na Universidade Federal do Ceará
(UFC), cujo Conselho Universitário aprovou a adesão.
Os trabalhadores pernambucanos também entraram com representação
no MPF por conta do processo de votação, que foi bastante confuso e tumultuada.
Ressalto que o atual reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o
professor Anísio Brasileiro de Freitas Dourado, se elegeu com a promessa de
resistir à EBSERH.
Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o procurador
Júlio Marcelo de Oliveira, do MPF, no Tribunal de Contas da União, chegou a
recomendar aos conselheiros universitários a não aderirem à EBSERH, a pedido
dos trabalhadores.
Em algumas instituições, os reitores foram até bastante
“criativos” para aprovarem a adesão. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), a
votação foi feita online. A comunidade acadêmica está se mobilizando para
reagir. Mais ao sul, em Santa Maria (RS), a reitoria da Federal (UFSM) aprovou
a adesão por ad referendum (decisão tomada unilateralmente por alguém que deve
ser submetida à aprovação de outras pessoas), meio pouco transparente, o que
torna difícil o controle.
Até a presente data, está pendente uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (Adin) que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Recentemente, centenas de entidades que compõem a Frente
Nacional Contra a Privatização da Saúde, divulgaram o “Manifesto em Defesa dos
Hospitais Universitários como Instituições de Ensino Público-Estatal,
Vinculadas às Universidades, sob a Administração Direta do Estado: Contra a
Implantação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares nos Hospitais
Universitários (HUs) do Brasil”.
Mesmo em um ano atípico como este, com eleições e Copa do Mundo,
a luta contra a privatização do sistema público de saúde segue em frente.
Entregar os serviços públicos aos empresários, por meio da EBSERH, privilegia o
lucro em detrimento da qualidade da assistência, da saúde do povo e dos
direitos dos trabalhadores da saúde. E isso, não podemos permitir.
* Veridiana Ribeiro é farmacêutica, Mestre em Ciências Farmacêuticas
pela UFPE e Primeira-Secretária da Federação Nacional dos Farmacêuticos
(Fenafar)