30 janeiro, 2014

A luta contra a EBSERH nos Estados

Por Veridiana Ribeiro*



Apesar da derrota eleitoral em 2002, o PSDB acabou sendo vitorioso no que diz respeito à implementação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE), elaborado por Bresser Pereira, na lógica do Estado Mínimo. O Banco Mundial indicava ao governo investir apenas na atenção básica à saúde, por ter custo relativamente baixo e alcançar grande parte da população.
Nesse ínterim surgiram as Organizações Sociais (as OSs) para administrar as Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e as Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP). Todas exemplos claros do PDRAE. Logo em seguida veio o REHUF, o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais, que propõe “novos” mecanismos de financiamento e a melhoria no processo de gestão. E, por último, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Em comum, as três formas de organização apresentam a flexibilização dos direitos dos trabalhadores no serviço público, a transferência da execução de políticas sociais para instituições de direito privado, os contratos de gestão e a ausência do controle social.
Durante muitos anos, a falta de pessoal, o desmantelamento e o sucateamento da estrutura dos HUs (Hospitais Universitários) foram ignorados até que, em 2006, um estudo do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que a situação de mais de 26 mil funcionários dos HUs contratados via fundações era ilegal.
Sabendo da necessidade dos HUs de continuarem a funcionar, o TCU deu um prazo longo (de 2006 a 2010) para que o Governo Federal se adequasse a lei. Era necessário que a situação fosse resolvida através da substituição do quadro de terceirizados por concursados.
No último dia de mandato do presidente Lula e também último dia do prazo dado pelo TCU para a adequação à lei, em 31 de dezembro de 2010, foi lançada a MP 520, que criava a EBSERH e trazia a “solução” para a “regularização” desses funcionários.
Em junho de 2011, a MP acabou expirando no Senado Federal, sendo prontamente reeditada em regime de urgência pelo Governo Dilma com uma nova face: o PL 1749, com algumas mudanças em relação a MP, mas com a mesma essência privatista. A Lei foi aprovada na Câmara Federal e no Senado, e sancionada pela presidenta (lei nº12550 de 15 de dezembro de 2011).
Apesar dos defensores da EBSERH - governo, Banco Mundial, muitos dirigentes de OSs e OSCIPs - , alegarem que ela é uma empresa pública, os termos de seu estatuto deixam claro que a empresa terceiriza a administração, desvincula os HUs das universidades, enfraquecendo o caráter público dos mesmos, o que representa uma afronta à autonomia universitária e aos pilares da universidade pública: ensino, pesquisa, e extensão.
E como fica o controle social que vem, ano a ano, sendo construído no setor da saúde? O controle social é um direito assegurado pela Constituição Federal para que os cidadãos não somente participem da formulação de políticas públicas, mas, sobretudo, fiscalizem a aplicação dos recursos públicos para que eles possam ser direcionados para medidas que realmente atendam ao interesse público. É o controle social que permite a interação do cidadão com as políticas públicas e com a ação do Estado, podendo exigir a prestação de contas do gestor público sobre sua atuação.
Trata-se de um assunto de extrema importância e que precisa ser encarado de frente, principalmente, nos conselhos de saúde. Frisemos, ainda, que foi a partir dos processos de controle social, vinculados ao sistema público de saúde, e das possibilidades originadas de contribuição dos trabalhadores, em especial os farmacêuticos, que surgiram propostas como o programa Qualifar SUS (de qualificação do farmacêutico no SUS).
E mais, a empresa criada para “cuidar” dos serviços hospitalares sendo guiada por interesses privados, longe do controle social e pouco (melhor dizendo nada) transparente, torna-se mais permissiva à corrupção.
O professor Nelson Souza e Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avalia que a consequência de entregar nas mãos de empresas a administração dos hospitais públicos é o desmantelamento do Sistema Único de Saúde (SUS): “Eu passo a ter o setor público cuidando da atenção básica e as empresas administrando os recursos da alta complexidade. Se eu faço isso, eu quebro o SUS e seus princípios de integralidade e universalidade”. Segundo o mesmo, o sistema deixa de existir.
Com a EBSERH, a característica de hospital voltado para a formação de profissionais da saúde é prejudicada. A pesquisa e a extensão estarão sob a lógica de funcionamento da empresa, considerando seus princípios fundamentais do cumprimento de metas, da gestão e da assistência na perspectiva mercadológica.
Um estudo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo demonstra que a taxa de mortalidade nos hospitais administrados por Organizações Sociais é 70,1%, maior do que nos de administração direta público-estatal. As OSs empregam a mesma lógica da EBSERH nos hospitais públicos.
Ressalto que o único local dentro do Sistema Único de Saúde onde é possível ao usuário ter acesso aos serviços de alta complexidade e alto custo é exatamente nos HUs, visto que os demais hospitais públicos ou conveniados, em sua grande maioria, não dispõem de profissionais qualificados e nem de instalações adequadas para tal atividade. Essa foi uma das justificativas usada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) para rejeitar a EBSERH, e continuar administrando o seu HU.
Além de tudo que já foi dito, a EBSERH desrespeita as duas maiores instâncias de controle social no SUS: a Conferência Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Saúde. Ambas, inclusive, se posicionaram contra a sua criação.
Como se não bastasse todos os argumentos contrários para entregar os HUs a essa empresa, o PCCS (Plano de Carreira, Cargos e Salários) da EBSERH, acaba com a isonomia salarial, privilegiando algumas categorias profissionais em detrimento de outras. Criam classes especificas com cargas horárias e faixas salariais diferenciadas. Por tudo isso, a nossa luta é por uma Carreira Única no Sistema Único de Saúde.

A luta nos estados
Até agora, duas instituições disseram não a adesão à EBSERH: a Universidade Federal do Paraná (UFPR), que foi a primeira a rejeitar, e, depois, a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). No entanto, de acordo com as informações contidas no site da empresa (www.ebserh.mec.gov.br), 19 universidades federais, em 19 estados brasileiros, aderiram. Mesmo contra a vontade da comunidade acadêmica. Em muitos casos, a adesão foi feita sem debate e sem a apreciação dos dois colegiados superiores das instituições, o Conselho de Administração (Consad) e o Conselho Universitário (Consun), como na Universidade do Maranhão (UFMA), onde a Justiça suspendeu o convênio entre a UFMA e a EBSERH, em 13 de setembro de 2013. A reitoria recorreu.
Já na Federal da Paraíba (UFPB), a reitoria encerrou a votação que foi bastante conturbada, no Conselho Universitário, e, depois, a portas fechadas, aprovou a adesão. As entidades de trabalhadores entraram com representação, pedindo a anulação do processo. No Piauí, a aprovação gerou demissão coletiva da diretoria e da equipe médica do HU. Na Universidade de Brasília (UnB), o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma Ação Civil de Nulidade de Atos Administrativos, na qual classifica a forma de contratação de serviços das atividades de saúde pela EBSERH como “precária, ilegal e imoral”.
O MPF na Bahia, acionado pelos sindicatos do estado, decidiu instaurar inquérito civil público para acompanhar a vinculação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) à Empresa.
O Sindicato Estadual dos Trabalhadores em Educação do Ensino Superior do Rio Grande do Norte (SINTEST/RN) protocolou uma representação contra a EBSERH, em 11 de setembro de 2013, na Procuradoria da República do Rio Grande do Norte para reverter o processo na federal potiguar. Já os sindicatos do Ceará, atuam para reverter o processo na Universidade Federal do Ceará (UFC), cujo Conselho Universitário aprovou a adesão.
Os trabalhadores pernambucanos também entraram com representação no MPF por conta do processo de votação, que foi bastante confuso e tumultuada. Ressalto que o atual reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o professor Anísio Brasileiro de Freitas Dourado, se elegeu com a promessa de resistir à EBSERH.
Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o procurador Júlio Marcelo de Oliveira, do MPF, no Tribunal de Contas da União, chegou a recomendar aos conselheiros universitários a não aderirem à EBSERH, a pedido dos trabalhadores.
Em algumas instituições, os reitores foram até bastante “criativos” para aprovarem a adesão. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), a votação foi feita online. A comunidade acadêmica está se mobilizando para reagir. Mais ao sul, em Santa Maria (RS), a reitoria da Federal (UFSM) aprovou a adesão por ad referendum (decisão tomada unilateralmente por alguém que deve ser submetida à aprovação de outras pessoas), meio pouco transparente, o que torna difícil o controle.
Até a presente data, está pendente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Recentemente, centenas de entidades que compõem a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, divulgaram o “Manifesto em Defesa dos Hospitais Universitários como Instituições de Ensino Público-Estatal, Vinculadas às Universidades, sob a Administração Direta do Estado: Contra a Implantação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares nos Hospitais Universitários (HUs) do Brasil”.
Mesmo em um ano atípico como este, com eleições e Copa do Mundo, a luta contra a privatização do sistema público de saúde segue em frente. Entregar os serviços públicos aos empresários, por meio da EBSERH, privilegia o lucro em detrimento da qualidade da assistência, da saúde do povo e dos direitos dos trabalhadores da saúde. E isso, não podemos permitir.

* Veridiana Ribeiro é farmacêutica, Mestre em Ciências Farmacêuticas pela UFPE e Primeira-Secretária da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar)