A aids e o coronavírus têm distanciamentos, mas tem mais coisas em comum do que imaginamos. A aids mata em média de 11 a 12 mil pessoas por ano só no Brasil, e ainda é, globalmente, o maior motivo de mortalidade de mulheres cisgêneras em idade fértil no mundo, segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre Aids. Na África subsaariana ainda se morre a rodo de aids e suas doenças satélites, como tuberculose e pneumonia. Num momento de avanço técnico, ainda morre-se por causas sociais e sanitárias.
Começo esse texto pra chamar a atenção das e dos leitores sobre como, de repente, instituições que para mim que vivo com HIV/aids em São Paulo, bem como pessoas queridas que conheço do movimento social de aids, e que há muitos anos são profissionais de saúde e ativistas do SUS e, em especial, da pauta do HIV/aids estão agora figurando nos noticiários como nunca vi, na juventude dos meus 27 anos. Especialistas do até então combalido Instituto de Infectologia Emílio Ribas, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP… nomes como Esper Kallas, Ester Sabino, Vera Paiva, e um longo etcétera de pessoas conhecidas da bolha da Aids começam a ser chamadas às pressas por autoridades e pela imprensa (grande e alternativa) para falar de um outro grande mal social que acomete a sociedade: o coronavírus.
Eu sou uma travesti negra e jovem. Vivo com HIV, mas não passo pelo pânico de não ter medicação, tratamento, avanço científico e não saber ao certo quando desenvolveria sintomas de doenças oportunistas, uma gripe ou pneumonia, ou um câncer, que poderia rapidamente levar à morte. Hoje em dia a luta é mais social, porque morre-se de aids devido à desigualdade social, o racismo, a LGBTIfobia e o machismo.
A aids, nos anos 80 e começo dos anos 90 foi, sobretudo para a comunidade LGBTI+, um grande pavor. O estigma da morte que nos rondava e que de fato levou muita travesti, muita pessoa trans, muitos gays, levou Betinho, Foucault, Henfil, Cláudia Magno, Cazuza, o rapper Eric Lynn Wright (ou simplesmente Eazy-E), Sandra Bréa, Leonilson, Marias Josés, Margaridas, Joaquinas, Joanas, Angélicas, Nzingas, Josefas… a aids já levou cerca de 32 milhões de pessoas para a morte desde o início da epidemia até o fim de 2018. Em maioria, pessoas do sul-global, não-brancas e pobres.
Uma travesti amiga minha, idosa, me disse que em uma semana, no auge dos anos oitenta, ela foi em 19 velórios, e que ela virou para outra travesti e disse: “não aguento mais enterrar viado. Eu preciso de um dia sem ir em velórios”. O pavor da morte pela aids reinava na comunidade LGBTI+, dizem as que sobreviveram. Até que surgisse os antirretrovirais nos anos 90, lá pra 95-96, a aids era a sentença de morte pra muitas de nós, que morria agonizando nas filas do mesmo instituto Emílio Ribas, que hoje volta a ser famoso, porque não se tinha vagas suficientes para todo mundo.
A aids teve cunho moral forte, e rolou em São Paulo a operação tarântula, no governo Jânio Quadros, para prender travestis para “coibir” o vírus da aids. Nessas prisões, muitas eram chacinadas, mortas, e muitas foram obrigadas a fugir pra Europa. Houve o que chamamos de êxodo travesti nos anos 80 e 90, muito impulsionado pelo pânico social que a aids ajudou a construir. Era corrente entre a população trans que “ou se morria por ser travesti com uma bala da polícia, ou se morria de aids”, segundo a amiga Sara Wagner Pimenta me disse há poucos dias por telefone, ao descrever como o senso de urgência e a ausência de espaço para sonhos de longo prazo sempre foi a crua realidade da população trans da geração anterior à minha.
Pois bem. Agora, numa escala mais generalizante, e sem estar associada ao comportamento sexual, e portanto, com menos carga moral culpabilizante, outra epidemia mortífera, tal como a aids, reaparece: o coronavírus. O covid-19, mais amplo e talvez mais devastador, traz de novo à baila da humanidade a nossa fragilidade enquanto espécie biológica, e deixa explícito as debilidades de um sistema desigual, que desmontou sistemas sociais e de saúde, e um sistema que deixa mais de 2 bilhões de pessoas no mundo sem acesso ao mínimo de saneamento básico. A semelhança com a aids se dá até com a ressuscitação do termo “grupo de risco”, já substituído na epidemiologia contemporânea por “populações vulneráveis”, justamente por conta do estigma. Mas o desespero das pessoas é maior, então vai os termos dos anos oitenta mesmo, os termos da Aids. Um novo vírus agora ameaça com o desconhecido, com a falta de respostas de manejo técnico, com o fato de eu abrir um prontuário pra um paciente hoje e vê-lo ir pra UTI amanhã, em estado grave, e ver que nada do que a dedicada equipe de profissionais da saúde fazem para manter a vida daquele sujeito está adiantando, de fato.
Mas onde quero chegar com esse texto? Eu vou ser bem direta: o ministério da saúde, através do seu Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCIST), que já é produto de desmonte do antigo DIAHV (Departamento das IST/Aids e Hepatites Virais), num acoplamento das infecções relacionadas à saúde sexual com tuberculose e hanseníase, soltou uma nota tentando tranquilizar as Pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA). Diz a nota que não há especificidades para PVHAs, a não ser o que já é colocado para a população em geral: isolamento e distanciamento social, medidas de higiene, trabalho home-office, etc. Acontece que isso é falado simplesmente porque NÃO HÁ PESQUISAS ainda que mostrem as interações do HIV com o coronavírus no organismo, e a nota homogeiniza todas as cerca de 900 mil pessoas que vivem com HIV/aids no Brasil hoje, não levando em consideração que desse contingente, nós não conseguimos alcançar a cobertura total de tratamento antirretroviral, que temos PVHAs vivendo em situação de cárcere, sem moradia, sem saneamento, sofrendo transfobia, racismo, sem emprego.
Segundo dados de uma reunião interministerial de 2016 entre o ministério da Saúde, do Trabalho e da Previdência Social, 60 a 70% da população vivendo com HIV/aids ESTÁ FORA DO MERCADO FORMAL DE TRABALHO. Será que o substituto do extinto departamento de aids não está sabendo disso? Será mesmo que somente eu, Carolina Iara, travesti cientista social, estou pesquisando sobre empregabilidade das PVHA? Será mesmo que o departamento que já foi referência mundial para a resposta à aids não sabe, junto com o ministério da saúde, que a informalidade predomina entre nós? Eu acredito não ser possível. E porque não coloca as questões de renda, de gênero, de raça na nota? Não é só de remédios pros próximos 90 dias, e índice de imunidade (contagem das células T CD4) e nem só carga viral indetectável pro HIV (ou seja, HIV insuficiente na circulação sanguínea para causar destruição do sistema imunológico e para transmitir o vírus a outras pessoas) que compõem a qualidade de vida de uma pessoa vivendo com HIV e a maior capacidade de enfrentar o covid-19 com um sistema imune e pulmão fortes.
O Ministério da Saúde, da Economia, da Justiça e todo o Estado Brasileiro precisam prever medidas urgentes como:
afastamento dos postos de trabalho formal que não possibilitem o home-office, sem redução salarial das pessoas vivendo com HIV/aids. Principalmente profissionais de saúde, que são linhas de frente, e pessoas como eu, que têm doenças crônicas para além do HIV, doenças respiratórias como asma ou bronquite, doenças cardiovasculares, que estamos sim enquadradas na população mais vulnerável a desenvolver sintomas mais graves; subsídio financeiro emergencial, renda mínima universal para as PVHA que vivem na informalidade, no trabalho sexual ou qualquer outra forma de ganhar renda que não tenha as proteções sociais e direitos trabalhistas, mas que não seja o dinheiro de miséria de 200 reais que o Paulo Guedes acha que é suficiente para 2 cestas básicas. Sem isso, fica inviável cumprir a necessária quarentena e isolamento; moradias emergenciais para PVHA que está em situação de rua, e precisa ser espaços amplos, não dá pra continuar concentrando muitas pessoas sem moradia em abrigos superlotados, e a suspensão dos pagamentos de água, luz, gás, telefone e, principalmente, aluguel; o imediato desencarceramento das PVHA e demais doentes crônicos que estão nos presídios, pois naquelas condições insalubres, o que veremos é uma tragédia sem precedentes no número de mortes de presos e presas; a imediata suspensão do Teto de Gastos Públicos, para se poder investir nos serviços públicos essenciais e para poder bancar todos os subsídios necessários aos mais pobres.
Sem isso, meus caros, as pessoas vivendo com HIV/aids estarão sim expostas, trabalhando e transitando na cidade para conseguir sobreviver, assim como eu, que vivendo com HIV e tendo bronquite desde que nasci, não fui dispensada do trabalho mesmo estando lotada num pronto-socorro do serviço público municipal de São Paulo, um hospital referência no atendimento da covid-19, devido a essa crença baseada na incipiência de pesquisas sobre coronavírus e HIV de que não somos parte da população vulnerável.
É bom nos mobilizarmos, assim como fizemos nos anos 80 e 90 para ter uma resposta à aids, para o coronavírus e garantindo também as especificidades. Até porque, para ter mais aproximações ainda, o possível tratamento farmacológico pro covid-19 pode vir de remédios usados para combater o HIV. Então, precisamos fazer isso com realismo, com calma no desespero, mas sem também sem se iludir ou tentar diminuir o problema, que é gravíssimo.
A liberdade, segundo Angela Davis e Patricia Hill Collins, precisa ser para todas, e num sentido amplo, e a interseccionalidade, a análise global da realidade (envolvendo raça, classe e gênero) precisa ser um instrumento para sermos livres. E para sermos livres, precisamos manter viável a nossa existência terrena enquanto humanidade.
* Carolina Iara de Oliveira é travesti, intersexo e negra, que vive com HIV/aids há 6 anos. Mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, ela estuda a empregabilidade de pessoas negras que vive com HIV/aids.